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terça-feira, 2 de agosto de 2011

Candelária: a volta por cima (publicado no jornal "O São Gonçalo" 02/08/2011)

José Rodrigo formou-se em Teologia,
está cursando Psicanálise,
é capelão prisional e mediador de conflitos
(Foto: Renato Fonseca)

Candelária: a volta por cima


Dezoito anos após a Chacina da Candelária, na qual oito meninos de rua foram mortos a tiros próximo às dependências da igreja do Centro do Rio, a história de um dos sobreviventes do episódio se reencontra em São Gonçalo com a de três jornalistas que cobriram o crime que se tornou emblemático na luta contra a violência policial no Estado. E é dessa forma – a partir desses diferentes olhares – que O SÃO GONÇALO revive a madrugada do dia 23 de julho de 1993, tendo como personagem o pastor evangélico José Rodrigo Fernandes Santiago, 32 anos, da Comunidade Profética Ministério Arca da Aliança, localizada na Rua Miracema, na Trindade. Ele estava entre as mais de 70 crianças e adolescentes que foram alvos dos disparos efetuados por policiais militares. Hoje, o religioso realiza um trabalho de ressocialização no sistema carcerário do Rio, inclusive no Batalhão Especial Prisional (BEP), onde tenta resgatar policiais que cometeram crimes semelhantes àquele praticado contra ele.

Aos seis anos de idade, ele deixou o casarão de número 242 da Rua Taylor, na Lapa, para morar nas ruas do Rio. “Meu pai me abandonou muito cedo e minha mãe era ‘mulher da vida’ (garota de programa). Eu era criança, mas essas coisas já mexiam muito com a minha cabeça. Foi quando resolvi ir pra rua engraxar sapatos e carregar bolsas de madames para ganhar um trocado”, contou.

A aventura de morar nas ruas tornou-se um vício e José Rodrigo virou Di Menor. Para ele, a cola de sapateiro era mais que uma droga: era um inibidor da fome, a mesma que o impulsionava a praticar pequenos delitos, como o furto. Assim como outros meninos de rua do Centro do Rio, Di Menor percebeu que as tradicionais missas do galo atraíam milhares de pessoas para a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, tornando o local propício para agir como pedinte e se abrigar.
“Aqui (Candelária) ficava lotado de meninos e meninas. Cheirávamos cola o dia todo e tomávamos banho no chafariz, onde também pendurávamos nossas roupas. Aquele cenário causava repulsa e medo em muitos que passavam, principalmente nos comerciantes da região. Alguns deles comentavam que nós afastávamos a freguesia”, recorda.

As visitas de membros de instituições de caridade, que distribuíam refeições no local, salvavam as noites de fome dos “meninos da Candelária”. E foi esse o artifício utilizado pelos assassinos no dia do crime.
“Um grupo passou em um Chevette e nos acordou avisando que voltaria com outras pessoas trazendo comida. Mais de 60 meninos se levantaram e ficaram esperando o alimento da madrugada. Eu, o Gambazinho (um dos mortos) e o Sandro (que voltou aos noticiários ao protagonizar o sequestro do ônibus 174) subimos em uma banca de jornal, onde ficamos consumindo drogas. Foi quando ouvimos os disparos”, relembra.

Aos 14 anos de idade e com a ‘malandragem’ que os oito anos como morador de rua lhe deu, Di Menor, baleado no braço e na perna, correu em direção ao 1º Distrito Naval, na Praça Mauá, onde recebeu voz de prisão dos marinheiros. Os militares pensaram que ele era um assaltante, o que acabou salvando sua vida. Já Gambazinho não teve a mesma sorte: correu em direção aos criminosos e acabou sendo executado na Avenida Presidente Vargas.
“Sobrevivi porque recebi todo o suporte da Marinha, inclusive fui medicado no hospital da corporação. Se tivesse ido para qualquer outra unidade, estaria entre os mortos”, contou.

No mês em que a Chacina da Candelária completa sua maioridade, o agora pastor José Rodrigo volta ao local do crime. Daquela data simbólica até hoje, ele passou por um projeto educacional da Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan), onde completou os estudos. Aos 20 anos, formou-se bacharel em Teologia e está cursando Psicanálise. É capelão prisional e mediador de conflitos. Além disso, realiza um trabalho de recuperação de usuários de crack e ressocialização de jovens envolvidos com o tráfico nos complexos de Manguinhos e do Alemão, na Zona Norte do Rio, o mesmo projeto que trouxe para São Gonçalo há quatro meses.
“Sou um testemunho vivo e quero que as pessoas entendam que onde há paz não há guerra. Essa é a mensagem que tento levar: não seja mais um nome na cruz da Candelária. Sempre me emociono quando falo isso, pois meu nome também poderia estar ali”, finalizou apontando para a cruz com os nomes das oito vítimas da chacina no jardim em frente à igreja.

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